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Cultura

Estreia de Geórgia Alves no Tesão: Recife de Amores e Sombras

Por: SIDNEY NICÉAS
A escritora, jornalista e cineasta Geórgia Alves traz o contundente livro de contos Recife de Amores e Sombras, do coletivo CAPA, em sua coluna de estreia

Foto: Mila Porto/Arte Tesão Literário

04/10/2020
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*por Geórgia Alves

Para o teórico da Arte, Ernesto Grassi, para além do que propõe uma obra de Arte Contemporânea é preciso enxergar a quais tendências ontológicas esta se vincula. Nada, nada mesmo, surge de um dia para o outro sem que tenha brotado de algo neste universo que não responda a grande lei da Natureza de que tudo é resultado de uma transformação. A base dela sempre virá de algo, enraizado, que muitas vezes se ignora. No livro "Arte como antiarte", de 1975 (Editora Duas Cidades), ele explica que o fato dos expositores de tais correntes não estarem conscientes dos nexos teóricos que os laçam, ou mesmo históricos, que os atam, deve fazer ao crítico identificar a lacuna que precisa ser preenchida.

Assim é também com uma cidade. Há sempre outra invisível. Nos advertia Ítalo Calvino. No sonho dos homens (e mulheres) há cidades invisíveis. Onde eles percorrem suas ruas, nos sonhos e devaneios noturnos. Para ver é preciso olhar com muito cuidado e não usar apenas os olhos, mas muitos outros sentidos. A razão, meu Deus, esta é que não nos contempla de todo em compreender o mundo.  Ao que críticos e sábios alertam, não se pode deixar de lado o aprendizado que cabe no provérbio italiano: "Dolce ao fondo".

A máxima inspirou livros e filmes e faz ver que nem sempre o que fica para o final ou está no espaço profundo é tão assentado que não valha a espera. O invisível aos olhos. Este, aliás, é um dos primordiais princípios da Filosofia. O pensamento humano racional e sensível sempre se provaram mais eficazes ao testar suas possibilidades. Abandonando as certezas iniciais, caminhamos por espaços de indefinição, no entanto, ao se provarem, terão maior mérito de verdade. Dela estarão mais próximos os seus valores. Por dissonante que soe, para os que acreditam em inspiração, é regra básica do bom Jornalismo. Duvide sempre da primeira ideia. E se você é mesmo profissional vocacionado, vai duvidar sobretudo das próprias premissas.

Não que a desconfiança vá ser assim, levada tão a cabo, que precise pautar toda a vida de uma espera. No entanto, é bem certo que há outros provérbios que comprovam que prudência nunca nos fez mal.

Este exercício aqui proposto pede um segundo olhar da crítica para o livro "Recife de Amores e Sombras". Feito por um Coletivo de Autores Autônomos Pernambucanos, autointitulado CAPA, o livrinho, de apenas sessenta e quatro páginas e seis contos, inicia pelo "Beijo da morte", texto de Adriano Portela, e termina com "Porrada", de Sidney Nicéas. A primeira história é narrada por um professor, que na exaustão de sua rotina cede aos encantos de deleitar seu final de noite, na volta para casa onde a esposa o aguarda, na alegre companhia de uma de suas alunas. Dada a encantos e insondável mistério, a jovem o entrete mais e mais e o enovela numa trama, cujo caminho o professor não consegue mais reconhecer senão como labirinto sem volta. O último, recupera instintos ainda mais baixos e seu alto grau de cinismo. Ambos com efeitos recorrentes de uma cinematografia inerente ao estilo e histórico de seus autores. No mesmo modelo narrativo, Clarinha, o conto que trago, espera o efeito sugerido por Machado de Assis. Um soco no estômago. Apesar da suavidade e vozes femininas tão envolventes. Ali estão os tesouros escondidos de uma cidade bela e esquecida. Por trás dos tapumes se oculta uma Recife perfumada, glamorosa e que brilhava com cristais e noites regadas a champanhe e iluminada por muita purpurina. Vestidos de saias rodadas e tecidas em refinamento de miçangas e lantejoulas, quando não feitos em rigor de rendas de filó e gripies. Tão franceses quanto o vocabulário tomado emprestado. Seguido por uma "Pérola de sabedoria burguesa", de Pedro Irineu Neto, que guarda lições de classe, e podem ampliar o espectro de significado que caiba em cada palavra; e antecedido por "A inoculação silenciosa", uma narrativa que já observa o risco de vírus à solta, escondidos em camadas e camadas de existências regidas por preconceitos. Ali, tudo se passa no cemitério de Santo Amaro. E ainda sequer tínhamos contado um milhão a mais de mortos por um acontecimento que além de ignorado passou a ser invisível, independente das curvas de crescimento e diminuição apontadas nos telejornais. Certezas nada científicas marcam nossas vidas. Tantas e tantas decisões pautadas pelo negacionismo. O único fato que é dado certo, numa cidade grande, é que não há sossego.

Inda mais se for considerada não apenas capital de Pernambuco, mas umbigo do mundo, centro nervoso de toda Região Nordeste. Este é o título de outro conto, "Sossego", de Alexandre Furtado, com ele esta análise se encerra. São meia dúzia, afinal. Meia dúzia de contos compõem, na primeira edição, tiragem de autor, o conjunto de textos que compõem o livrinho. Estes regidos pelo prefácio do escritor Marcelino Freire. "Um livro agitado", escreve ele. "Grito e respiração", onde a palavra vira arma. Sabendo que a tendência humana é sempre de perder a intuição, sobretudo em centros urbanos. Estes lugares tão perturbados por infindáveis ruídos. Naturalmente perturbadores. "Termos um livro quente nas mãos. Hellcife ferve". Onde amores e sombras se misturam e todos são convidados a chafurdar nessa lama. Na contracapa, uma verdade dita: "Nossa palavra de guerra está aqui. E sangra".

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Geórgia Alves é escritora e jornalista. Pesquisadora e Mestra em Teoria Literária pelo Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Literatura Brasileira, pelo mesmo programa. Há 18 anos estuda a obra de Clarice Lispector e a relação com o Recife. Tem três livros seus: Reflexo dos Górgias (Editora Paés), Filosofia da Sede (Chiado Editora, pela qual também participa de três Antologias de Poesia de Língua Portuguesa). E "A caixa-preta" (pela Editora Viseu). Participa da Coletânea de Contos do CAPA, Recife de Amores e Sombras (2017), "Cronistas de Pernambuco" (2012), da Carpe Diem, e "Mulherio das Letras Portugal" (2020). Assina roteiro e direção dos curta-metragens "Grace", do projeto coletivo "Olhares sobre Lilith", de 26 videospoemas inspirados nos poemas de "As filhas de Lilith", um abecedário de mulheres; e "O Triunfo", que recebeu vários prêmios. No Brasil e Cuba. Segundo afirma, "outros estão porvir". É professora de Arte. Ensina. Estética, História da Arte e Teoria. Orienta outros autores.

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