Josessandro Andrade: Mestres do Moxotó - Parte 2

Foto: Elias Rodrigues de Oliveira/Patrick Tomasso/Unsplash/Arte Tesão Literário
*por Josessandro Andrade
De acordo com o teórico russo Mikhail Bakhtin, a linguagem é dialógica, ou seja, firma sempre um diálogo entre, no mínimo, dois seres, consequentemente dois discursos. Segundo ele, “Os enunciados não são indiferentes uns aos outros, nem auto-suficientes; são mutuamente conscientes e refletem um ao outro... cada enunciado é pleno de ecos e reverberações de outros enunciados, com os quais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicação verbal.” Ulysses Lins, além do epíteto de “o Trovador do Sertão”, é considerado o “Patriarca da Literatura Sertaneja”, ao tomar posse na Academia Pernambucana de Letras, ocupando a Cadeira nº 1, em seu discurso de posse em 1934, entitulado “Exaltação a Poesia Sertaneja”, se coloca que ali estava como, segundo escritor do Sertão a fazer parte daquela casa, como um representante dos cantadores de viola, dos vaqueiros aboiadores, dos autores de folhetos de cordel, ou seja dos poetas populares do Sertão. Chamou a atenção da academia para a necessidade de valorização da poesia sertaneja, de forma praticamente precursora. Vamos encontrar nos poemas de Ulysses, a influência dos versos de repentes, toadas, embolados e folhetos de feira, misturando-se hora ao léxico parnasiano, ora a lira pré-modernista. A propósito, não é sem razão, que Manuel Bandeira, poeta modernista e membro da Academia Brasileira de Letras afirma: “Vejo que sua formação parnasiana - evidente na estruturação irrepreensível de seus versos - não colidiu com o amor a coisas do nosso querido Nordeste - facheiros e mandacarus do combusto Moxotó! Tudo isto me foi lido por mim com grande deleite e venho agradecer-lhe os momentos agradáveis que me proporcionou”. Um exemplo desta questão aqui levantada é o poema “O Sertão no futuro”:
Quando nos trilhos a locomotiva
Resfolegar por todas as quebradas
Revelando ao Nordeste a chuva viva
Do progresso esplendentes alvoradas
Quando os grandes açudes transbordando
Foram se pondo em comunicação
A água sempre a correr torcicolando
No álveo dos rios secos do sertão
Quando a forte caudal de Itaparica
Ali sem freios a rugir titânica
Transformar em região fértil e rica
Um deserto ao controle da mecânica
E Paulo Afonso à ação da engenharia
Converter-se num dínamo potente
Revelando a riqueza da energia
Que há milênios oculta avaramente
O meu Sertão assim tendo no seio
A forja ardente da brasilidade
Será da pátria o mais robusto esteio
Rocha viva da nacionalidade
Sim, será na pujança da coragem,
Guarda da fé no templo da nação
A sentinela indômita e selvagem,
Velando a pátria no setentrião
E aqui teremos o Brasil Guerreiro,
Brasil-Cerne, de têmpera viril
Brasil-Sangue, Brasil bem brasileiro
Brasil-Sertão, orgulho do Brasil!
Podemos observar na análise do discurso deste poema a mensagem profética de um visionário das caatingas, com uma visão bem a frente do seu tempo e do seu meio, capaz de, em plena década de 30 do século vinte, se colocar antevendo temas que mais tarde se tornariam realidade, tais como “Transposição do Rio São Francisco “, “Ferrovia Transnordestina”, “Hidroelétrica de Paulo Afonso”, entre outros que vieram a se concretizar já no terceiro milênio, em plena segunda década do século Vinte e um. Que capacidade admirável de como poeta do povo, ser porta-voz das esperanças de sua gente, como que conhecedor da intimidade da natureza do seu meio, alimentado pelo conhecimento pudesse, neste canto premonitório, preparar o espírito de sua terra para as bonanças que hão de vir.
Durante o decorrer da poética Ulyssiana vamos ver a confirmação daquilo que Manuel Bandeira apontou e que, reforçado pelo poeta Marcos Cordeiro, dramaturgo e artista plástico, filho do poeta Waldemar Cordeiro, conterrâneo de Ulysses, ao se referir ao livro “E a noite vem”: “Nele o poeta se torna íntimo das seduções da Serra do Jabitacá e da singeleza alada do João-de-barro, da Casaca-de-couro, do pica-pau e do bem-te-vi”. Marcos afirma ainda, falando sobre o livro “Sol Poente”: “O que dizer do livro Sol Poente? Com seus sonetos melancólicos, e das suas “Trovas” e “Rimas Violeiras” com uma afetuosa Louvação a Rachel de Queiroz, culminando com uma elegia para o Vaqueiro Hermínio Preto, onde nos leva para ouvir o Canto da Acauã anunciando, na velha Fazenda Pantaleão, para Xexeus, xofreus, galos-de-campina, juritis e asas brancas que o querido vaqueiro morreu. Este colóquio com os pássaros da caatinga nos evoca emoções telúricas imemorais”.
Um exemplo claro do raciocínio de Jorge é o poema “Madrugada sertaneja”, onde de maneira magistral Ulysses Lins descreve, de forma apoteótica, o espetáculo de uma alvorada no Sertão, com a força criativa de sua imagética:
Nada mais belo eu conheço
Que a loira madrugada
Que aos cantos da passarada
Vem acordar o sertão
Que lindo o quebrar da barra
Quando aos poucos suavemente
As cortinas do oriente
Para o céu subindo vão
E quando por trás da Serra
prateada a lua aparece
e ao sul o Cruzeiro desce
fazendo o Pelo-sinal
ao fulgor d’uma Estrela d’alva
e ao som dos mais doces cantos
o Sertão goza os encantos
de uma aurora boreal
O Xexéu-clarim das matas
Solta o grito alvissareiro
Canta o galo no poleiro
Ao longe chora o acauã
O campo é todo uma orquestra
Tudo respira à poesia
É toda incenso e magia
A natureza pagã.
Mugem as vacas saudosas
Balem nos apriscos as ovelhas
Zumbem pelo ar as abelhas
Grita alegre o bem-te-vi
Além canta a siriema
Gorjeia o concriz em festa
E no seio da floresta
Geme oculta a juriti
Meu Sertão quanta saudade
Dos áureos tempos de infância
Quando eu recordo com ânsia
Aquela quadra louçã
Em que feliz no teu seio
Admirava inocente,
tua beleza esplendente
nos prelúdios da manhã
Ah! Esquecer é impossível
O cheiro das madrugadas
Quando a noite as trovoadas
te lavavam todo o chão
como esquecer-te eu não posso
por mais longe que estivesse
porque de ti não se esquece
quem veio a luz no Sertão.
Primo do médico, folclorista e compositor Zé Dantas, cuja mãe era dos “Siqueiras do Moxotó”, o genial poeta de Carnaíba frequentava o apartamento de Ulysses Lins em Copacabana, no Rio de Janeiro, onde o “Trovador do Sertão conheceu músicas ao violão do parente, que mais tarde se tornariam sucesso nacionais na voz de Luiz Gonzaga. Já naquele tempo, Ulysses e Zé Dantas compartilhavam informações e cantos sobre e do Sertão. Nas “Rimas violeiras“ estende sua toada de dor pela partida do primo, “Adeus a Zé Dantas”, onde na estrofe final arremata:
Adeus, Zé Dantas!-o Adeus
Da minha imensa saudade
Na hora em que por ti soluçam
as violas no Sertão,
num gemer cuja plangência
comove toda nação.
Quem te fala é um sertanejo,
Que chora por ti também.
Amigo-irmão que em verdade
Sempre te quis muito bem!
Irmãos por laços de sangue,
Mais irmão pelo ideal..
Não sei se estás ouvindo...
Vem-me a lágrima caindo
Sirva de ponto final.
Ulysses Lins, Representante de Pernambuco na Federação das Academias de Letras do Brasil”, para Mendonça Júnior (da Academia Alagoana de Letras), “É, sem nenhum favor, um dos maiores poetas pernambucanos e nenhum outro pode lhe disputar o primado como cantor do sertão nordestino. Além do incontestável valor puramente literário, técnica apurada, variedade de rimos, espontaneidade e música, a sua poesia contém farto material folclórico”. Outras faces poéticas de Ulysses vão comprovar tal afirmação , para somar-se ao que aqui já exposto, o seu lirismo primoroso nas suas trovas e quadras, que o fizeram ser conhecido como “O Trovador do Sertão”, capaz de uma estrofe como essa:
Como uma luz de esperança
Nos vem quando não se espera,
Espalhaste em meu outono
Sorrisos de primavera.
Ou ainda a refinada ironia, nesta outra quadra:
Judas enfim teve um gesto
E o mundo cobre-o de ápodos
Se os Judas de hoje o imitassem
Onde achar cordas pra todos?
Apesar de toda a formação e do apego às raízes da terra e do homem do Sertão, Ulysses Lins soube em sua missão poética ir além do regionalismo e aproximou-se das inovações poemáticas do seu tempo, tanto formais como de conteúdo, como “A Cruz”, onde faz uma soneto concretista que desenha o próprio formato cruzado, e os poemas “A Mulher” e “Pernambuco”, onde constrói três sonetos em um só.
A Presente análise é apenas uma provocação para os que querem avançar mais no conhecimento sobre a literatura poética de Ulysses Lins, cuja obra vem sendo reeditada pela família através das editoras Carta Capital e CEPE - Companhia Editora de Pernambuco, além da realização de seminários e eventos como o Festival Ulysses Lins e a visita e pesquisa em sua casa Museu, na fazenda Conceição em Sertânia.
(Continua na próxima quarta-feira, dia 23)
Clique aqui para ler a Parte 1 deste texto.
https://www.veragora.com.br/tesaoliterario/artigo/josessandro-andrade-mestres-do-moxoto-parte-1
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Josessandro Andrade é um poeta e professor de Sertânia (PE). Publicou o Livro "Com Cheiro de mar e Quixabeira", (Moxotó, 2015), além de mais de dez folhetos de Literatura de cordel de sua autoria. Como Compositor, tem músicas em parceria com dezenas de compositores parceiros. Participação com poemas publicados em Várias Antologias Poéticas Internacionais, Conexões Atlânticas (Poetas brasileiros e Portugueses), vol.I (2017) e vol.II (2018) e Ecos do Nordeste (Poetas Nordestinos), ambas publicadas em Portugal, sendo que desta última foi co-organizador com Adriana Mayrinck, da INFINITA Lisboa (Assessoria Literária); e Nacionais: Festival Vamos Fazer Poesia (Serra Talhada-PE), Edições 2016, 2017 e 2018. Sempre se apresenta recitando seus poemas em manifestações de rua e nas praças públicas, em eventos do Sindicato dos trabalhadores rurais, Sindicato dos Trabalhadores em educação e passeatas da classe estudantil em sua cidade. Autor teatral com várias peças de sua autoria encenadas e premiadas, jornalista, editor de suplementos literários, professor e palestrante. No Ano em que completa 50 anos, vê sua poesia presente em vários estados do Nordeste e no exterior e vários eventos celebrando esta sua marca.
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