Miró se foi: “os vivos quando voltam de um enterro voltam mortos”
Foto: Sidney Nicéas
*por Sidney Nicéas
Escrevo estas palavras com um nó nas tripas. Meu poetamigo Miró faleceu hoje (domingo, 31), vitimado pelo câncer. Ele era exemplo vivo do poder da Literatura. Nascido e criado no bairro da Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife, João Flávio Cordeiro da Silva poderia ter se tornado traficante, matador, ladrão como alguns de seus amigos de infância. Foi a poesia que salvou Miró (ele mesmo afirmava isso); salvou da bandidagem, mas não do drama que é viver.
Jogou fora os espelhos da casa
foi embora sem saber da sua cara
deixando para trás a lembrança
dele mesmo
ele era apenas seu casaco vermelho
sua bermuda
R$ 10,00
e a certeza de que nem tudo se compra
nesse mundo
(Se Olhar é Preciso, Viver Não é Preciso)
Conheci Miró nas minhas andanças literárias, nem lembro há quanto tempo. Era impossível não rir com as brincadeiras recíprocas, nem se sensibilizar com sua luta contra o alcoolismo. Na Bienal de Pernambuco, em 2017, Miró apareceu cheio de dentes, vários amigos bancaram uma prótese para ajudá-lo e ele me confessou, baixinho, “Vou tirar essa porra dos meus dentes, Sidney, incomoda demais! Vou terminar cuspindo essa chapa quando tiver declamando!”. Não cuspiu a dentadura naquela ocasião, mas apareceu no dia seguinte com a boca desfalcada. Esse era Miró, autêntico, sem frescura.
pais ensinam aos filhos
que velhos maltrapilhos
são papa-figos
que mastrubação faz mal à saúde
e que não é muito bom
ficar no sereno
filhos ensinam aos pais
que aproveitem a vida
pois o mundo vai se acabar no
ano 2000
é mentira
que
só
a
porra
(Primeiro de Abril)
A última vez que vi Miró foi há quase um ano, em agosto de 2021. Queria lhe dar um abraço (fazia uns tempos que não o via) e aproveitar para entrevistá-lo para o Tesão Literário. As mudanças dos seus números de celulares dificultava bastante o contato e sempre acompanhei a luta dele pela saúde, já que integro um grupo de whatsapp voltado para arrecadar fundos para seus tratamentos e, também, atualizar das notícias sobre ele. Tinha uma urgência pela vida. “Viver é não antecipar a morte. Eu antecipei a minha”, disse pra mim e esta frase integrou a matéria (https://www.veragora.com.br/tesaoliterario/artigo/miro-no-tesao-nao-quero-deixar-o-quintal-de-deus-agora). A notícia da sua partida me partiu ao meio.
agora
agouras meu destino
desejando lá no fundo
que minha vida seja rasa
de que me falte ar
na hora do mergulho
e lembrar que
gostávamos tanto
de ir à praia
(Separação)
Noutro trecho da matéria, uma frase de Miró acabou virando o título: “Não quero deixar o quintal de Deus agora”. O poeta sabia que viver não tinha nada de romântico e que poesia serve também para dar socos no nosso estômago.
faz sol em São Bento do Una
se tivesse chovendo nada mudaria
talvez regaria as flores
que o dono da funerária festeja
mais um pouco de grana na sua conta bancária
e elegante
minha mãe dorme sem saber de nada
(16 de Janeiro de 2012)
Difícil “perder” Miró, o amigo, o poeta. Vou parar de escrever para me arrumar, ir ao seu velório (um símbolo da despedida), sabendo que voltarei tal qual ele um dia escreveu num de seus poemas sem título; ele escreveu para mim, para nós.
os vivos quando voltam de um enterro
voltam mortos
num sol desgraçado
em uma falta d'água
que regue a última semente
os mortos nada sabem
sem ciúmes, livros e contas a pagar
os vivos pensam até
que Deus lhes dará conforto
o morto dispensa qualquer comentário
pois sabe: o que o acompanha
são flores
o monte de terra
e talvez lembranças de fatos corriqueiros
de uma breve passagem
num quintal de Deus
os vivos quando voltam de um enterro
voltam mortos
Antes de ir, mais uma lembrança: dia desses Miró me contou que chegou a vender livros num cemitério, durante um velório - havia ido se despedir de um amigo falecido e, como sempre andava com livros na bolsa, alguém pediu pra comprar e ele não perdeu a oportunidade. Desta vez Miró é o livro. E vou até a carcaça que sobrou para dizer à sua alma, eterna: o quintal de Deus fica mais pobre sem você, amigo. Adeus. Até breve, poeta…
--
*Hoje publicaríamos uma matéria sobre a Biblioteca Popular do Coque, no Recife, exemplo na inclusão social pela literatura, mas o falecimento do poetamigo Miró mudou nossa programação (publicaremos a matéria da BPC no domingo que vem).
Notícias Relacionadas
- Por SIDNEY
- 27/03/2024
Prever o Futuro Depende do Bom Entendimento do Passado
Alfredo bertini vem ao Tesão com um texto crítico que cobra que uma...
- Por SIDNEY
- 26/03/2024
La mia casa em massarosa
Geórgia Alves traz um conto sobre nomes e as transformações que a...
- Por SIDNEY
- 25/03/2024
Conexão SP: Tá quente, tá frio
O dramaturgo e escritor Mário Viana volta ao Tesão com mais uma de...
- Por SIDNEY
- 22/03/2024
Mulheres Barbeiras
O Barbeiro-Poeta volta ao Tesão com um texto crítico sobre os...
- Por SIDNEY
- 21/03/2024
O mistério do numeral 4
Claudemir Gomes analisa a final do Campeonato Pernambucano entre...
- Por SIDNEY
- 20/03/2024
Conexão RJ: Arrependimento
O professor Renato Sousa apresenta uma crônica sobre mais um dos...