Conexão SP: Pequenos ódios
Foto: Annie Spratt/Unsplash
*Por Mário Viana
Cada vez que abrimos um portal de notícias, ligamos a TV, entramos numa rede social ou folheamos aquele antigo método de informação chamado jornal, constatamos que não falta motivo para odiar alguma coisa no Brasil atual. Não importa seu perfil político, time, sexo ou fetiche, o lado oposto é sempre destinatário dos mais ácidos comentários. São os Grandes Rancores, de dimensões tão continentais quanto o país.
Mas todo mundo guarda bem escondido um conjunto de birras, pinimbas e cismas que costuma não revelar a ninguém. Não é por vergonha, mas por ser mesmo desnecessário até comentar. São os Pequenos Ódios, que não atravancam a existência de ninguém, mas que nos servem de limite: “Meu lado fofo termina exatamente aqui”.
Um exemplo: tenho na cozinha um prato de sobremesa ao qual devoto um ódio silencioso. O pobre do prato nunca me fez nada. Comprei-o eu mesmo há vários anos na Tok & Stok e, do nada, comecei a pegar birra do coitado.
Ainda na loja, o desenho que o enfeita me lembrou um velho filme da Disney, Se Meu Fusca Falasse. Em casa, não sei se alguém comentou, mas a ilustração começou a me lembrar Ayrton Senna (por quem nunca nutri grandes admirações). Estava plantado o veneno que azedou minha relação com o prato.
Pra piorar, ele é dos fortes, não quebra por nada. Outros pratinhos mais queridos se espatifaram na minha mão, mas o Detestado, não. Continua lá, insensível ao meu desprazer em vê-lo.
Tenho comigo que todo mundo alimenta pequenos ódios desse tipo. Pense nos objetos que fazem parte do seu cotidiano e dos quais você tem raiva. “Ah, eu não tenho raiva de nada”. Mentira, tem sim. É uma raiva sem motivação, pura, simples e gratuita – gratuita, não, porque você pagou por aquilo.
Confesso que até me divirto com essas minhas frescuras. Peguei birra de uma toalha específica de um jogo americano. Não há cristo que me faça usá-la. Discretamente a evito, torcendo pra que ninguém perceba meu bode. Mesmo assim, é essencial que ela esteja à mesa, como uma espécie de baliza pros meus sentimentos cotidianos.
Guarda-roupa é outro território de odiáveis. São muitas as peças que se acomodam por ali, entre gavetas, cabides e prateleiras, às quais não dedicamos um segundo sequer do olhar. A roupa ainda está em ótimo estado, daria pra ser usada tranquilamente, mas caiu na vala das desgostáveis. “Enjoei”. O verbo resume tudo.
A pessoa racional e equilibrada que esteja me lendo neste momento (pode não ser o seu caso, mas enfim…) até pensaria: “Por que o bobão não se desfaz da roupa que o enjoa? Tanta gente sem ter o que vestir e ele com frescura.” Acreditem, nem tudo é assim tão fácil.
A roupa pode ter sido presente de alguém querido, que volta e meia aparece em casa. Na minha paranoia, a primeira coisa que essa pessoa vai perguntar é: “Cadê aquela roupa que eu te dei?”
Há mais de 30 anos, Elza, a empregada que trabalhava em casa, nos presenteou com uma piranha envernizada, que o filho dela trouxera do Pantanal. Parecia um troféu esquisito que ela fez questão de colocar na sala.
Como Elza trabalhava todo dia em casa, ficava impossível esconder a piranha. Uma vez fiz isso, antes de receber uns amigos pra jantar. Claro que esqueci de colocar a piranha de volta em seu posto. Qual foi a primeira coisa de que Elza sentiu a falta ao chegar pro trabalho no dia seguinte? Pois é. Pra piorar, a piranha era inquebrável. As coisinhas odiadas detêm o poder da eterna durabilidade.
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Mário Viana é Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.
https://vianices.wordpress.com/
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