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Opinião

Exclusivo: Leonardo Tonus no Tesão Literário

Por: SIDNEY NICÉAS
“Precisaremos resistir para poder (sobre)existir até quando ainda houver no Brasil um governo que não respeite seus artistas”

Foto: André Argolo

25/10/2020
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*por Sidney Nicéas

Pensar o mundo contemporâneo deveria ser papel da maioria da população de um país. Nunca o é, por razões das mais diversas, ainda mais no Brasil, cujas particularidades neste prisma caberiam num livro. E bem que este livro poderia ser do professor Leonardo Tonus. Também escritor, tem currículo vasto e é cada vez mais reconhecido como um pensador importante dos nossos tempos.

Tonus é professor em literatura brasileira na Sorbonne Université (França). Em 2014 foi condecorado pelo Ministério de Educação francês Chevalier das Palmas Acadêmicas e, em 2015, Chevalier das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura francês. Foi curador do Salão do Livro de Paris de 2015 e da exposição “Oswald de Andrade: passeur anthropophage” no Centre Georges Pompidou (França, 2016). É o idealizador e organizador do festival Primavera Literária Brasileira. Publicou diversos artigos acadêmicos sobre autores brasileiros contemporâneos e coordenou diversos ensaios e antologias. Poeta, além de participar de várias antologias, é autor dos livros Agora Vai Ser Assim (Editora Nós, 2018) e Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019).

Nesta entrevista exclusiva para o Tesão Literário, por e-mail, Leonardo Tonus fala sobre a literatura contemporânea e os problemas do fazer literário no Brasil, dente outros assuntos relevantes.

 

TESÃO LITERÁRIO – Temos no Brasil um ‘complexo de colonialismo’; o que vem de fora acaba supervalorizado – e isso se reproduz nas próprias esferas regionais do país. Há mais de três décadas vivendo na Europa, mas ligado ao Brasil, como você enxerga essa questão?

Diversos setores da sociedade brasileira ainda sofrem, em minha opinião, de um complexo de colonialismo exacerbado (termo, aliás, muito mais adequado do que a horrível e depreciativa expressão “complexo de vira-lata” empregada por Nelson Rodrigues para evocar a nossa baixa auto-estima). Não se apagam assim do dia para a noite quinhentos anos de colonialismo. A máquina colonial visa ao aniquilamento do sujeito minorizado social e economicamente, tornando-o, como sabemos, refém de um sistema ideológico que legitima políticas totalitárias e até genocidárias. Ao sujeito colonizado é negada toda e qualquer possibilidade de existência que não responda às exigências da máquina colonial. Se as lutas anticoloniais alteraram (ainda que parcialmente) este quadro, tal sistema mantém-se vivo em nossa sociedade e isso até nas esferas mais progressista. Penso, por exemplo, no colonialismo epistemológico que ainda paira sobre a nossa produção acadêmica e científica. Enquanto pesquisador há quase vinte anos não posso deixar de evocar os chamados modismos epistemológicos que muitas vezes nada têm a ver com a nossa maneira de existir, de pensar e de ser. De uns tempos para cá, observo, no entanto, mudanças significativas graças, nomeadamente, à emergência das teorias interseccionais dos estudos de gênero, feministas ou dos estudos voltados para questões étnicas. A sobreposição (ou intersecção) de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação permitiram, de fato, colocar em evidência formas de pensar fora de um eixo tradicional de poder Norte-Sul. Estas trouxeram à tona, entre outras e outros, escritoras nigerianas, filósofos senegaleses ou feministas brasileiras. Djamila Ribeiro, Souleymane Bachir Diagne, Chimamanda Ngozi Adichie são alguns dos nomes deste novo panteão epistemológico que abriu portas para encararmos, de fato, quem somos.

TL – Ariano Suassuna disse certa vez que “um escritor só pode ser considerado relevante depois de morto”. Exercitando um olhar futuro, o que esperar da escrita contemporânea?

A situação que evocava o grande Ariano Suassana não é uma novidade em si. Ela diz respeito ao conservadorismo que caracteriza parte do setor cultural brasileiro e que se manifesta, nomedamente, pela visão patrimonial que se tem da literatura. Trata-se de uma postura que agrega em si todo um sistema de valores (e de poder) e que a noção de cânone acaba por corroborar. A literatura importou o modelo teleológico do cânone a partir do qual se determinam as obras a serem preservadas, celebradas ou expurgadas em função de questões ideológicas ou, no contexto atual, mercadológicas. Mas como sugere o professor Dominique Viart da Universidade de Nanterre, “Opor a literatura contemporânea à literatura patrimonial equivale a esquecer que qualquer literatura foi contemporânea”. É uma pena que certos setores da produção cultural brasileira desconheçam este mote que poderia ser de grande valia para se celebrar, em eventos literários, autores como Lygia Fagundes Telles, Conceição Evaristo ou Maria Valéria Rezende que ainda continuam vivos. Talvez a crise pandêmica atual e o desmonte ao que se confrontra o setor literário traga novas respostas a uma produção nacional cada vez mais intensa e impactante.

TL – O tema imigração é parte da sua trajetória de vida. Como solucionar o paradoxo de um mundo cada vez mais conectado e apartado?

Como pensar uma solução para uma situação que já nos anos 80 George Steiner apontava como crítica, em particular, no que tange à exaustão dos recursos verbais e ao ilhamento do indivíduo da sociendade pós-moderna?  Segundo Steiner a cultura e a política de massas contemporâneas teriam engendrado, para além da brutalização e da desvalorização da palavra, a emergência de fronteiras intransponíveis entre os indivíduos. No mundo global das comunicações rápidas, fáceis e performativas o sujeito social vive uma situação paradoxal de performatividade comunicativa, mas a partir do seu isolamento. O que fazer para conter tal tendência? Como ser ouvido em meio ao clamor da inflação verbal de nossos dias? São questões de que a produção cultural contemporânea brasileira não têm se apartado apostando, como já sublinhva Umberto Ecco, em sua capacidade de criar “comunidade”, ou seja, um estar-em-comum em que cada subjetividade seja preservada, e sobretudo, respeitada.

TL – A Primavera Literária Brasileira tem buscado, segundo suas palavras, uma paridade nas escolhas de escritores brasileiros que vão à França, e agora também a outros países, no que se tornou um importante evento acadêmico e literário. Como tem sido essa relação Brasil-Europa/EUA? Quais os saldos mais positivos dessa empreitada?

Criei em 2014 o festival Printemps Littéraire Brésilien. O projeto se inscreve numa perspectiva pedagógica de promoção e divulgação das culturas e das literaturas lusófonas. Trata-se de um encontro anual idealizado para ampliar a formação de estudantes inscritos nos cursos de português em instituições de ensino no exterior. Fico feliz ao observar que o evento já se consolidou como um importante espaço de discussão literária no exterior, potencializando experiências culturais em torno da língua portuguesa e de nossa cultura. Estes mais de 15 anos de atividades em torno da promoção da nossa literatura me permitem hoje ter uma visão bastante lúcida em relação a este trânsito entre o Brasil e os países do Norte que ainda deve ser consolidada, sobretudo se levarmos em conta a diminuição significativa de obras brasileiras traduzidas.

TL – Nosso colunista colombiano Carlos Sierra muito critica uma espécie de ‘isolamento’ do Brasil em relação a outros países da América Latina. Como a literatura brasileira pode fortalecer seus vínculos latinos? Às vezes parece que só a Europa e os EUA valem a pena...

Este isolamento é real e sua superação só será possível quando passarmos a nos pensar plenamente “americanos”. Não podemos deixar de lembrar a dimensão ideológica da própria noção de latinoamericanidade que nasce em pleno século XIX, no momento em que a França tenta conter os avanços panamericanistas e pangermanistas pelo hemisfério sul e aumentar sua influência política e econômica abaixo da linha do Equador. Falar hoje em “latinoamericanidade” é continuar a perpetrar este eurocentrismo cultural excludente que isola e nega a existência de civilizações e culturas outras que compõem o nosso espaço americano: Apaches, Quechuas, Kayapós, Guaranis e tantos outros. Se o Brasil ainda se mantém cego à sua própria produção cultural não-europeia, o que dizer do seu desconhecimento em relação à literatura mexicana, equatorina ou nicaraguense? Tentamos ao longo dos anos 90 atenuar estas fronteiras internas graças à introdução do ensino do espanhol (e do português) nas escolas públicas do Cone Sul;  à criação de grupos editorias  voltados para a produção sul e centroamericana; à implementação de bolsas de tradução (que hoje desapareceram) pelo governo brasileiro e à participação do Brasil nas principais feiras das Américas (Colômbia e de Guadalajara). Mas tudo no Brasil é frágil e pensado a curtíssimo prazo.  A atual crise econômica, social e política que atravessa o mundo não há de nos ajudar. Parece que voltamos viver o final dos anos 70, período durante o qual prevalecia a desconfiança mútua entre países vizinhos situados abaixo do Equador.

TL – Num país com 11 milhões de analfabetos e 38 milhões de analfabetos funcionais, você não acha que anda faltando maior mobilização do meio literário para combater esse mal crônico?

Não acredito, mesmo se parte do meio literário parece ter se deixado seduzir, nos últimos tempos, pelas armadilhas da espetacularização. Trata-se aqui, no entanto, de uma parcela pouco representativa de um “meio” que compreende, igualmente, bibliotecários, contadores de histórias e até professores. O “meio literário” não se limita (e não deve se limitar) somente a seus autores e seus editores.

TL – Crise no mercado livreiro e editorial, Pandemia, políticas públicas na contramão... Num país onde (ainda) existem mais videolocadoras do que livrarias, qual o futuro do livro no Brasil? Quais caminhos podem fazer a diferença para nos salvar?

Esta questão não se restinge hoje ao Brasil. Mas o fato do país dispor de uma cadeia do livro fragilizada (e incompleta) fez com que crise atual nos atingisse de maneira mais impactante. Não saberia hoje lhe responder sobre os caminhos a seguir e quem dera se o pudesse fazer. No entanto a pandemia nos ensinou algo: que o futuro se encontra hoje no presente. Ora, neste “agora” em que vivemos desde o mês de Março, pude observar algumas initiativas colaborativas e participativas interessantíssimas, sobretudo no sentido de revalorizar a prática da leitura e da leitura compartilhadas. Talvez seja este o novo caminho a ser trilhado? Um caminho em que o valor humano torne-se o ponto fulcral do próprio fazer literário?

TL – Temos visto por aqui escritores e artistas de outros segmentos se envolvendo mais na política, concorrendo a cargos públicos eletivos. Essa é uma saída interessante para fortalecer o setor artístico, em se tratando de Brasil?

Como todo e qualquer cidadão, artistas e escritores são agentes políticos. Mas isso não implica que necessariamente tenham de assumir cargos políticos para defender suas causas. A triste atuação da recente Secretaria da Cultura é uma prova do impossível casamento entre a liberdade que exige o fazer artístico e os compromissos e arranjos que decorrem da política, sobretudo quando esta é marcada por derivas totalitárias e um ranço ideológico de cunho fascista. O que nos resta então? Um artivismo através do qual não deixemos nunca de questionar o mundo em que nos encontramos.

TL – Em 2018 o poeta de Varjota, no Ceará, Mailson Furtado, nosso colunista, ganhou o Prêmio Jabuti com uma edição independente e quase caseira. Dar vez ao autor de todos os rincões do país deverá se tornar tendência daqui pra frente? Aliás, já não passou da hora de revermos essa cultura de prêmios – para ser notado de fato é preciso estar entre os vencedores?

Em 2015, a professora, escritora e produtora de eventos literários, Suzana Vargas, publicava um artigo na seção de Cultura de O Globo que causava polêmica. Neste ela indagava sobre os objetivos das grandes festas e feiras literárias que, na altura, se multiplicavam pelo país (e até no exterior). Cito Suzana Vargas:

"Eventos não levam ninguém a ler mais ou a comprar mais livros. Eventos literários sejam eles festas, feiras, bienais com maior ou menor projeção nacional, são fenômenos de marketing. Ou seja: eventualmente ouve-se falar num produto chamado livro, em seus autores, como quem anuncia uma nova marca de refrigerante. O cidadão escuta através da mídia que livros são essenciais, que ler faz bem, acorre às feiras, as escolas se movimentam, as prefeituras distribuem o vale livro ou que nome tenha essa ajuda essencial dos órgãos envolvidos. Na verdade, feiras e eventos cumprem essa missão de popularizar o objeto livro, divulgar alguns nomes da produção literária nacional e internacional, mas são, (...), eventuais".

Acredito que esta mesma questão poderia ser colocada em relação aos Prêmios Literários. Prêmios literários formam leitores? Obviamente que não. Então, volto a fazer a pergunta: para quê e para quem finalmente escrevemos? Para jurados de Prêmios Literários? Os Prêmios Literários têm a sua importância sobretudo no que diz respeito à sobrevivência financeira do autor e dos editores. Mas esta também apresenta os seus limites.

TL – Aqui em Pernambuco temos um ditado que resume a luta do escritor brasileiro, mais ainda do nordestino: “tem que chupar cana e assobiar ao mesmo tempo”. Até quando precisaremos somente resistir para poder (sobre)existir?

Precisaremos resistir para poder (sobre)existir até quando ainda houver no Brasil um governo que não respeite seus artistas, que não respeite as mulheres, a população indígena, os homossexuais ou a comunidade afro-brasileira. Pois como já dizia o autor de origem romena Petru Dumitriu, “o homem é uma questão de perseverança”; o homem e o escritor. Enquanto isso, teremos de chupar muita cana e assoviar ao mesmo tempo. Mas, pelo menos, que o façamos juntos!

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