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Opinião

Mituti: Hermann Hesse arrebentou as portas do meu armário

Por: SIDNEY NICÉAS
Se somos seres múltiplos, por que não nos reinventarmos? Ricardo Mituti vai fundo nisso, usando sua experiência...

Foto: Frederik Merten/Unsplash

07/12/2021
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*Por Ricardo Mituti

Numa das inúmeras crises que experimentei em relação à carreira no Jornalismo, ouvi de minha esposa, certa vez, algo que vou carregar até o fim dos meus dias: “Quem foi que disse que você precisa ser jornalista a vida inteira?”. Embora a resposta possa ser um tanto óbvia para muita gente, nunca ninguém havia me colocado a coisa assim, tão às claras, com tamanha simplicidade e objetividade.

Por alguma razão que desconheço, sempre considerei que, uma vez jornalista, jornalista até morrer. Talvez porque minha geração ainda cresceu num período em que não se falava sobre transição de carreira. Pais e avós costumavam trabalhar na mesma área – e, às vezes, na mesma empresa – a vida inteira.

Fosse esse contexto sociofamiliar o motivo da minha crença ou, quiçá, o gene de um improvável antepassado alemão pendurado em algum galho da minha árvore genealógica, fato é que por quase duas décadas achei que o Jornalismo seria meu fim – em todos os sentidos. Até que a Literatura, como dizem os mais descolados, tocou fogo no meu parquinho.

Para não ser injusto, eu já havia registrado um princípio de incêndio depois da pergunta despretensiosa, porém cortante, da primeira-dama. Mas esse foco se alastrou, de fato, quando conheci o professor Dante Gallian e seu Laboratório de Leitura e entendi o porquê o livro que ele havia recém-lançado tinha o sugestivo título de “A Literatura como Remédio”.

Acadêmico, pós-doutor com currículo internacional, intelectual e erudito, Dante costuma dizer que o humano é um ser prismático; que não é oito OU oitenta, mas oito E oitenta. E que também é nove, e dez, e doze, e vinte e quatro, e quarenta e três, e cinquenta e quatro vírgula setenta e seis, e por aí vai.

Admito ter achado essa concepção um tanto perturbadora inicialmente. Pelo menos em termos profissionais. Afinal, se eu era jornalista, era jornalista e ponto. Como é que poderia ser outra coisa, oras? E enquanto ainda ruminava tal formulação, deparei-me com a ideia de humanização elaborada por Gallian a partir de um conceito do filósofo francês Montesquieu: o de ampliação da esfera da presença do ser – na tradução do também professor Teixeira Coelho.

Para humanizar-me, explicam eles, eu preciso expandir-me. E como eu me expando? A partir das vivências, da experiência, do conhecimento que adquiro com a vida e com o outro. Com todo esse conteúdo, inflo, ganho corpo, posso multiplicar-me, transformo-me em muitos, e não sem esforço, claro, posso chegar à tal condição prismática da existência humana.

Comecei então a recordar a admiração que sempre tive por biografias de figuras que eram E, e não OU – pelo menos em âmbito de ocupação –, e com louvor. Um exemplo que sempre me ocorre é o de Guimarães Rosa, médico, diplomata e escritor. E talvez por isso, por não ter ascendência alemã ou, quiçá, por sofrer de esquizofrenia – cheguei a cogitar, admito –, entendi que não, eu não estava fadado a passar toda minha existência como jornalista. Se eu sou prismático, então que de fato o fosse! Formei-me coordenador de Laboratório de Leitura em 2018 e, desde então, tenho atuado mais nessa função do que como jornalista.

Fim? E viveu feliz para sempre? Evidente que não! Nos últimos tempos, passei a sonhar em segredo com algumas novas ocupações profissionais, com receio de que nem minha esposa fosse capaz de dar conta – e que minha psiquiatra não me desse alta nunca mais. “Melhor deixar para lá”, cheguei a decretar. Mas eis que resolvi ler “O Lobo da Estepe”, do Nobel de Literatura Hermann Hesse, e esse livro simplesmente explodiu minha cabeça.

Não bastasse ver-se como um duplo, meio homem, meio lobo, e estar no ápice de uma crise existencial de arrepiar até o último fio da barba de Dostoiévski, o protagonista Harry Haller, num momento sombrio da narrativa, lê o seguinte num livretinho pouco inocente, cuja personagem, sem coincidência alguma, tem o mesmo nome e sobrenome que ele e enfrenta o mesmo dilema do homem-lobo leitor: (...) não há um único ser humano (...) que possa ser explicado como a soma de dois ou três elementos principais; e explicar um homem tão complexo quanto Harry por meio da ingênua divisão em lobo e homem seria uma tentativa positivamente infantil. Harry compõem-se não de dois, mas de cem ou de mil seres. Sua vida (como a vida de cada um dos homens) não oscila simplesmente entre dois pólos, tais como o corpo e o espírito, o santo e o libertino, mas entre mil, entre inumeráveis polos.

Se Dante e Montesquieu já haviam aberto a fresta de uma porta, agitando alguns dos meus eus que eu sequer ainda acreditava ao certo existirem, Hermann Hesse – que para minha sorte não tem nada daquele meu antepassado alemão que jamais existiu – arrebentou meu armário, resgatou-me das profundezas do pragmatismo e libertou os muitos homens, mulheres, lobos, cães, raposas, peixes e serpentes que tenho em mim. 

Um marceneiro, um designer de interiores e um artesão foram os últimos a sair, sem pressa. Estavam acompanhados por um coordenador de Laboratório de Leitura, por um escritor e por um jornalista. Tratei de agarrá-los. Saímos deliberando animadamente, rumo a 2022. Sob as bênçãos de Harry Haller.

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Ricardo Mituti é jornalista, escritor e coordenador do Laboratório de Leitura. Atua como assessor de comunicação desde 2000. É coautor de O Brasil do Sol Nascente, autor de Histórias (Quase) Verídicas - adaptado para websérie - e Órfãos de São Paulo. É, ainda, idealizador e apresentador do talk show lítero-cultural Epígrafes, no ar na internet entre 2016 e 2018, e da vivência lítero-humanística Viva Livros - Uma Experiência Literária. Também é palestrante, redator, roteirista, produtor, editor, ghost writer, narrador de audiolivros, mediador de debates, mestre de cerimônias e consultor para assuntos do mercado editorial e livreiro. É mestrando em Saúde Coletiva na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, com pesquisa em "Humanidades, Narrativas e Humanização em Saúde".

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