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Opinião

Ricardo Mituti: Até tu, Shakespeare?

Por: SIDNEY NICÉAS
 De Italo Calvino a Shakespeare, Ricardo Mituti parte em uma busca pela melhor forma de se entender e ser.

Foto: Goashape (@goashape) /Unsplash

05/01/2022
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*Por Ricardo Mituti

 

Quando você acha que já compreendeu uma matéria, eis que surge alguma variável nunca dantes observada e faz suas convicções irem pro espaço. Será que é só comigo que isso acontece com assustadora frequência?

“Putz!”, você deve ter resmungado, “o ano mal começou e lá volta esse cara...”. Sou capaz de apostar que pensou algo do tipo, estimado(a) leitor(a). E, se o fez, tem lá sua razão. Mas devo alertá-lo(a) que esta primeira crônica de 2022 é mais um pedido de ajuda do que uma tentativa de filosofia barata. Eu juro! E isso porque arrasto minha inquietação há semanas – portanto, desde antes deste novo ano –, sem ter conseguido sequer compartilhá-la com alguém. Agora, desculpe-me, mas será você quem pagará o pato.

Mês passado, neste espaço, falei sobre a multiplicidade da existência humana – e da minha, em especial – a partir de Harry Haller, protagonista do romance-bomba atômica “O Lobo da Estepe”, de Hermann Hesse (se você não leu esta crônica e não está mais de ressaca, então leia aqui).

Já havia me convencido de que muitos Ricardos – e sei lá mais quem – habitam em mim. E que bom que isso não era esquizofrenia. E, melhor ainda, que presente era poder ser quem me conviesse, quando me conviesse, e encontrar uma boa justificativa na literatura. Se alguém me chamasse de doido, eu, um tanto blasé, responderia: “Você já leu ‘O Lobo da Estepe’? Não? Então, por gentileza, faça o favor de não encher o meu ilustre saco!”

Pois bem. Depois de ter lido Hermann Hesse e emendado um complexo Maiakóvski (li o poema “Sobre Isto”, se quer saber), resolvi dar um pouco de paz aos meus neurônios e fui ler contos que pareciam um tanto despretensiosos: “O Homem que Corrompeu Hadleyburg”, de Mark Twain, e “O Visconde Partido ao Meio”, de Italo Calvino. E se o primeiro, de fato, proporcionou-me alguns bons momentos de descontração, o segundo, muito bem recomendado, passou longe de ser só um passatempo fantástico, como sugere o título.

A narrativa é ótima, ágil e fácil, importante esclarecer. Mas, a despeito de algumas pinceladas divertidas, de inocente o conto de Calvino não tem nada. E sim, prezado(a) leitor(a), foi este o volume que refez o nó desfeito por Hermann Hesse (e apertou-o um pouco mais).

“O Visconde Partido ao Meio” narra a história de um nobre italiano atingido no peito por uma bala de canhão durante uma batalha. E como você deve supor, acertadamente, sobrevive. Aliás, sobrevivem, no plural, porque cada uma das suas metades ganha vida própria.

De maneira caricata, porém deveras humana, o genial autor deu a uma metade personalidade generosa; a outra fê-la má. Até aí, tudo bem; Dostoiévski já dizia que o ser humano é vasto – e, pelo jeito, Harry Haller levou isso ao pé da letra e me reconfortou. Entretanto, estou até agora ruminando duas passagens ditas pelas metades do visconde.

A má, após ter cortado um polvo vivo ao meio, comentou com o sobrinho: Que se pudesse partir ao meio toda coisa inteira (...), que todos pudessem sair de sua obtusa e ignorante inteireza. Estava inteiro e para mim as coisas eram naturais e confusas, estúpidas como o ar: acreditava ver tudo e só havia a casca. Se você virar a metade de você mesmo, e lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a metade que resta será mil vezes mais profunda e preciosa. E você há de querer que tudo seja partido ao meio e talhado segundo sua imagem, pois a beleza, sapiência e justiça existem só no que é composto de pedaços.

“Ah, que bom!”, pensei eu, meio amargurado, meio irônico (com o perdão da piada pronta). “Era pra ser só uma leitura relaxante e divertida, e Calvino me vem com essa...”

Não bastasse o meio-visconde mau ter enxotado a mim e aos meus eus da zona de conforto na qual havíamos confortavelmente nos instalado depois d’O Lobo da Estepe, a metade boazinha do nobre italiano, umas vinte páginas adiante, conversando com a jovem por quem se apaixonara, acerta-nos com este petardo: Ó Pamela, isso é o bom de ser partido ao meio: entender de cada pessoa e coisa no mundo a tristeza que cada um e cada uma sente pela própria incompletude. Eu era inteiro e não entendia, e me movia surdo e incomunicável entre as dores e feridas disseminadas por todos os lados, lá onde, inteiro, alguém ousa acreditar menos. Não só eu, Pamela, sou um ser dividido e desarraigado, mas você também, e todos. Mas, agora, tenho uma fraternidade que antes, inteiro, não conhecia: aquela com todas as mutilações e as faltas do mundo. Se vier comigo, Pamela, vai aprender a sofrer com os males de cada um e a tratar dos seus tratando dos deles.

“Excelente!”, decretei, mas não sem antes tentar recapturar alguns dos meus eus que já haviam saído correndo, apavorados. “Por que raios eu dou tanto valor à literatura?” 

Bem, já que assim sou, não pude deixar de recordar o Bardo imortal, o Filho da minha Santíssima Trindade Literária, em busca de auxílio: “Socorro, Shakespeare! E agora, como saio dessa? Ser uno, inteiro, único; ser um, mas dividido ao meio; ou ser muitos, ser múltiplo? Ser o quê, quem e quantos, afinal, William? Eis a questão!”

Corri a procurar uma resposta no meu acervo de excertos literários. Por óbvio, acessei o diretório de Shakespeare. E se o príncipe da Dinamarca atormentou-se com uma grave acusação feita pelo fantasma do pai, posso dizer que vivi experiência não menos surreal ao ver saltar aos meus olhos uma das mais célebres passagens de “Hamlet”, tanto ou mais do que o ser ou não ser, proferida pelo jovem protagonista ainda no ato I da peça: Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, | Do que sonha a tua filosofia. 

Juro que depois de ter (re)lido isso, pude avistar o elegante fantasma do próprio Bardo me espreitando. E, contrariando a famosa fleuma britânica, o dito-cujo gargalhava sarcástica e convulsivamente para mim, enquanto batia repetidas vezes a palma de uma mão sobre a outra mão fechada.

 

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Ricardo Mituti é jornalista, escritor e coordenador do Laboratório de Leitura. Atua como assessor de comunicação desde 2000. É coautor de O Brasil do Sol Nascente, autor de Histórias (Quase) Verídicas - adaptado para websérie - e Órfãos de São Paulo. É, ainda, idealizador e apresentador do talk show lítero-cultural Epígrafes, no ar na internet entre 2016 e 2018, e da vivência lítero-humanística Viva Livros - Uma Experiência Literária. Também é palestrante, redator, roteirista, produtor, editor, ghost writer, narrador de audiolivros, mediador de debates, mestre de cerimônias e consultor para assuntos do mercado editorial e livreiro. É mestrando em Saúde Coletiva na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, com pesquisa em "Humanidades, Narrativas e Humanização em Saúde".

 

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