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Opinião

Ricardo Mituti: Guimarães Rosa e a famigerada realidade

Por: SIDNEY NICÉAS
Uma discussão sobre tratamento precoce, uma saída de linha e Guimarães Rosa entrando para dirimir a querela. Duvida?

Foto: Mila Porto

11/05/2021
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*Por Ricardo Mituti

Não sou do tipo que gosta de entrar em discussões acaloradas para defender minhas opiniões. Aliás, ao contrário. Há quem diga, inclusive, que sou um forte candidato a ser cancelado justamente por não sair por aí postando que sou favorável a tal coisa ou contrário a alguém. Em tempos de todo mundo tem opinião sobre tudo, sou, para muitos, um ET de passagem pela Terra.

Ocorre que ETs também erram (e eu que achava que errar era apenas humano!).

Não faz muito e me peguei deveras alterado numa conversa familiar sobre essa maldita pandemia e o tal do tratamento precoce. “A eficácia desse famigerado tratamento ainda não foi cientificamente comprovada”, bradei, dedo em riste e cenho carregado.

Por sorte, meus interlocutores, defensores da ideia, eram pessoas do bem e não queriam briga. Ainda assim, não nego, fiquei mal por ter traído meus princípios e ter desembestado a falar o que eu pensava.

Dias depois, remoendo o episódio, o famigerado me voltou com tudo à mente. E não, não me refiro ao tratamento precoce; falo do vocábulo, do adjetivo que usei para caracterizar as medicações que supostamente poderiam evitar a contaminação pelo coronavírus – ou, quiçá, reduzir os efeitos mais danosos da Covid. Lembrei-me do imenso Guimarães Rosa. O autor do épico “Grande Sertão: Veredas” também é autor de um conto cômico do qual gosto muito, justamente intitulado Famigerado, presente no excelente livro “Primeiras Estórias”.

Neste conto, um conhecido matador de nome Damásio Siqueiras procura um respeitável médico para saber o que significava a palavra famigerado. Temendo por uma possível desgraça em torno do referido vocábulo, o doutor responde apenas que famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”...

O matador, gente simples (ainda que um matador!), nada entende, evidentemente. “Vosmecê mal não veja em minha grosseria no não entender, responde o homem. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”

Que saia justa! O médico não havia mentido, afinal. Famigerado, de fato, é aquilo ou alguém que tem muita fama, que é notório e renomado. No entanto, a palavra também possui um sentido pejorativo - omitido pela sagaz personagem -, relacionado à má reputação, à má fama. Aliás, ela é popularmente mais conhecida por este sentido do que pelo primeiro.

Em resposta às questões do desconfiado matador, o nobre e temeroso doutor insiste, meio sem jeito: Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito... E diante de uma singela pressão para garantir que não mentia, o médico arremata: Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!...

Quis a minha boa sorte que eu, ao confrontar os familiares cloroquiners e ivermectiners, não estivesse diante de nenhum Damásio Siqueiras ao me referir ao tratamento precoce como famigerado. Porque ao contrário do astuto médico da narrativa roseana, o que eu espumei pela boca durante meu improvável ataque científico-verborrágico foi visceral e verdadeiramente pejorativo.

Se o matador do conto, satisfeito com a explicação de seu interlocutor, antes de se despedir ainda diz, agradecido: “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!”, eu, por minha vez, científico e ET que sou - mas talvez desprovido de astúcia ou de grandezas machas -, só o que quero é adentrar minha nave cá com minhas convicções, em silêncio monástico (mais do que nunca!), e zarpar dessa famigerada realidade.

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Ricardo Mituti é jornalista, escritor e coordenador do Laboratório de Leitura. Atua como assessor de comunicação desde 2000. É coautor de O Brasil do Sol Nascente, autor de Histórias (Quase) Verídicas - adaptado para websérie - e Órfãos de São Paulo. É, ainda, idealizador e apresentador do talk show lítero-cultural Epígrafes, no ar na internet entre 2016 e 2018, e da vivência lítero-humanística Viva Livros - Uma Experiência Literária. Também é palestrante, redator, roteirista, produtor, editor, ghost writer, narrador de audiolivros, mediador de debates, mestre de cerimônias e consultor para assuntos do mercado editorial e livreiro. É mestrando em Saúde Coletiva na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, com pesquisa em "Humanidades, Narrativas e Humanização em Saúde".

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