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Opinião

Ricardo Mituti: quando a vida imita a arte

Por: SIDNEY NICÉAS
Mais do que a batida questão, Ricardo Mituti nos brinda com um baita conto tendo uma obra de Bulgákov como base

Foto: Arisa Chattasa/Unsplash

17/08/2021
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*Por Ricardo Mituti

A aparência daquele lugar obrigou-o, por instinto protetor, a ir na frente da família.

Cruzou uma quadra de futebol meio destelhada, decorada com uma pilha de entulho numa das laterais, e divisou, adiante, uma mesa de sinuca vazia.

Vazia também parecia a propriedade, onde os únicos ruídos que conseguia distinguir eram de uma moda sertaneja, que vinha sabe-se Deus de que canto, e algo que parecia uma fonte jorrando. 

Deu bom dia.

Um gato gordo, meio cinza, meio preto, apareceu do nada nos seus pés e mirou-o com olhar humano, quase sarcástico. “Behemoth!”, gracejou. Até hoje é capaz de jurar que viu o animal sorrir antes que desaparecesse da mesma forma como brotara.

Insistiu na saudação. Uma cabeça de pele macilenta e cor de terra batida apareceu do outro lado de um balcão, com ar severo. Tinha vastos cabelos de um branco amarelado cujo sebo sustentava a rigidez dos fios que rumavam longamente em direção à nuca. O restante do corpo não conseguiu avistar.

- Dia. -, retrucou a cabeça.

- Aqui que é o Pesqueiro do Matraca?

- É.

- É que meu filho queria pescar...

- Tá.

- Mas cadê o lago?

A cabeça ergueu com preguiça o queixo ossudo, no qual despontavam alguns minúsculos fios, apontando em direção ao barulho daquilo que parecia ser a fonte jorrando.

- E como funciona? É por hora, as iscas, as varas, e se ele pegar algum, como fazemos?

- É vinte.

- Vinte reais a hora, é isso?

- É.

Acenou para o carro, onde havia trancado esposa e filho. 

- O senhor me vê uma vara, então, por favor?

A cabeça deu um giro e desapareceu feito o gato gordo.

A moda sertaneja silenciou. Batuque, maracas e os gritos estridentes de Mick Jagger eriçaram os pelos de seu braço. “’Sympathy for the Devil’? Que caceta de rádio é essa?”   

Deu alguns passos até o limite de um pequeno barranco. O filho, de uns seis ou sete anos, surgiu ofegante e sorridente. Balançava as mãos e mirava o horizonte. A mãe do menino estancou logo atrás:

- Mas cadê o lago? – perguntou ela, cortante. - Lá fora só vi cavalo, vaca e um gato.

A cabeça de pele macilenta reapareceu, fixada a um corpo magro e minúsculo, coberto por uns trapos sujos de terra que cheiravam a peixe flambado. Numa das mãos de unhas compridas - e não menos sujas -, uma fina e curta vara de bambu e uma lata de cerveja cortada pela metade contendo o que parecia ser algum tipo de ração. Na outra, um copo americano com uns quatro dedos de um líquido transparente. No canto da boca, cujos poucos dentes eram de um amarelo ainda mais decisivo que o dos cabelos, o homúnculo agora ostentava um toco de cigarro apagado que quase lhe caía dos lábios finos e ressecados. O gato gordo, ressurgido, caminhava por entre as pernas do cidadão.

- Valeu, tio! -, gritou a criança, arrancando a vara das mãos do homem e quase o levando a nocaute. Como se conhecesse aquele espaço desde vidas passadas, deslizou pelo barranco e partiu às pressas em direção ao nada.

- O senhor é o Matraca? – indagou o pai à ex-cabeça.

- Eu.

Riu, mas o homúnculo parece não ter notado.

Puxou a esposa pelo braço e, juntos, desceram o barranquinho com cuidado quase senil. Finalmente puderam avistar o lago - o qual, é preciso admitir, era um laguinho bem razoável para aquele pedaço de terra árida. 

O filho já havia mergulhado a linha na água e saltitava com frenesi. A poucos passos da criança, de pé, bebericando e pescando com um tipo de bengala, um homem que, a despeito da pouca idade, tinha cabelos nitidamente tingidos e ostentava um pincenê. “Korôviev!”, disse, com voz baixa e para si mesmo, o patriarca da família. “Quem diabos usa pincenê em pleno século vinte e um? Ainda mais sendo jovem...”. Passos arrastaram-se atrás do casal.

Reunidos então todos à beira do lago, o previdente pai quis descobrir se o tal do Matraca grunhia mais do que monossílabos. Os olhos do homúnculo miravam duas ínfimas e alquebradas construções que lembravam minichalés alemães, tipo casinhas de boneca, na margem oposta.

- O senhor mora numa delas?

- Alugo.

O trissílabo animou-o sobremaneira, embora, não se pode negar, o estranhamento de pensar em alguém com mais de um metro e cinquenta de altura vivendo naquelas pífias construções tenha sido ainda mais significativo – e claustrofóbico – para ele.

- Ah, então aqui é tipo um hotel fazenda? – maldou, não sem receio de ser afogado pelo homúnculo. O pescador de pincenê soltou uma gargalhada ainda mais estridente que os gritos de Mick Jagger.

Com meio sorriso, que parecia ser de um tipo esquisito de orgulho e tristeza, Matraca começou a se revelar:

- É que só dinheiro pesca não banca propriedade – resmungou, engolindo palavras e com sotaque esquisitíssimo, virando-se e apontando para as montanhas.

- Então o senhor é o proprietário? – deduziu ele, redundante.

- Sou. Herança mãe.

Nunca, estimado(a) leitor(a), comece a contar uma história a uma pessoa curiosa se não tem real interesse em narrá-la por completo – ou seu dia poderá virar um inferno!

- Entendi. E vocês são daqui mesmo?

- Rússia.

O pai do jovem pescador quis gargalhar, mas se conteve. E, parece, mais pelo surpreendente sotaque do que por sincero respeito ao seu interlocutor, emudeceu, de cenho franzido. Só depois de pensar um pouco é que conseguiu retomar a conversa:

- E como é que vocês vieram parar aqui, nesse meio do nada?

- Mãe nunca soube explicar direito. Contava história que trabalhava empregada apartamento de escritor famoso em Moscou escritor morreu atropelado por bonde pessoas esquisitas mudaram para apartamento depois acidente numa noite mãe chamada em salinha escura por homem e homem mandou mãe beber vinho que apagou ela. Mãe acordou sabe o diabo quando ali no mato com gato gordo no colo – e apontou, sem fôlego, primeiramente para o longe e depois para o bichano, sentado sobre as patas traseiras em cima das sandálias velhas do homem.

“Wolland! Não pode ser!”, sorriu ele, com um quê diabólico nos lábios.

A história contada por Matraca era quase a mesma da vivida por um personagem de “O Mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgákov, que ele coincidentemente lia por aqueles dias. “Tudo bem que esse velho se diz russo... sim, ele tem um sotaque estranho e come palavras ao falar... mas não, com essa cara, esse copo e esse jeito estranho, nunca deve nem ter ouvido falar de Bulgákov”.

Resolveu dar corda ao homem:

- Que história mais esquisita, hein, Seu Matraca? E o senhor ficou por lá?

- Eu funcionário público com bom salário e bom cargo mas internado porque bebia demais.

A mãe do menino, até então uma Vênus de Milo dos rincões, deu um leve pisão no pé do marido e gritou para o menino, que ainda saltitava, mas agora com menos ímpeto:

- Filho, vamos embora!

Leitor voraz – e curioso – que era, o pai havia decidido não sair de lá antes de saber aonde aquela conversa maluca ia terminar.

- Puxa, sinto muito! Mas, no final, o senhor ficou bem e se mudou para o Brasil...

- Mais ou menos mãe fez vida aqui na roça casou com patrão e conseguiu me trazer pra cá pra parar de beber na Rússia.

- Entendi. Mas deve ter sido difícil para o senhor, apesar de estar internado, ter aberto mão de um bom emprego, um bom salário e uma vida toda em Moscou para se mudar para o meio do nada no Brasil, sem trabalho, sem dinheiro, sem amigos...

O homúnculo voltou a sorrir com metade da boca e pigarreou.

- Marido mãe montou bar pra mim trabalhar.

Desta vez, ele não conseguiu se conter:

- Pô, Seu Matraca – riu alto –, o senhor tinha problema com álcool na Rússia e sua família montou um bar para você aqui no Brasil?

A mãe da criança, de ouvidos sempre apurados, puxou o garoto pelo braço no momento em que ele erguia a linha com um peixe pendurado:

- Chega, filho, vamos embora!

- Mas, mamãe, acabei de pescar, olha só! Peguei um peixe! Peguei um peixe! – berrava, erguendo a vara como a um troféu.

Alheio ao entorno, e com sotaque ainda mais estranho, o dono do pesqueiro respondeu ao interlocutor com surpreendente erudição, correção e pontuação:

- Marido mãe dizia que algo de mau se esconde nos homens que fogem do vinho, do jogo, da companhia de mulheres sedutoras, das conversas à mesa...

“Caceta!”, espantou-se o pai do menininho, “essa frase, exatamente assim, está em ‘O Mestre e Margarida’”. Abstêmio inveterado que era, lembrou-se que achara tremenda graça quando lera tal passagem. Ainda que, no livro, o pensamento tenha sido solenemente proferido por Wolland, um pseudohistoriador especialista em magia negra sob a qual se escondia, na verdade, ninguém menos que Satanás. Sim, na narrativa fantástica de Bulgákov, o Cão, o Demo, o Cramunhão, o Belzebu em pessoa estava de passagem por Moscou, acompanhado por seu pitoresco séquito: uma bruxa bem jeitosa e sedutora, um capanga assassino, um intérprete trapaceiro (que usava pincenê) e um gato falante (e gordo).

Definitivamente, o patriarca daquela família de turistas precisava descobrir se estavam, ele, mulher e filho, diante de um literato, de um bêbado ou, vade retro, de um enviado do capeta (afinal, dizem que a vida imita a arte...). 

- Escuta, Seu Matraca, não vá me dizer que esse tipo de gente, que não bebe, não tem vícios e não aprecia os prazeres da vida, ou é bem doente, ou odeia em segredo quem está a seu redor...  – provocou, citando o complemento literal da filosofia satânica expressa no referido trecho do livro.

- Sim sim sim! – sorriu o homúnculo. – Marido mãe dizia exatamente isso! Mas também dizia verdade que exceções são possíveis...

- Ah, não! O senhor já levou Bulgákov! Isso é que não é possível! – retrucou o interlocutor. - A frase do Capeta termina justamente assim, Seu Matraca. Aliás... estou chamando o senhor de Seu Matraca o tempo todo... desculpe... como é mesmo o nome do senhor?

- Nikolai, com cá, mas muita gente chama eu Nicolau.

- Ufa, que bom! – suspirou o pai do jovem pescador. - Pensei que ia dizer que se chamava Wolland...

- Wolland era marido mãe. E você, como chama? – indagou o agora ex-Matraca, com olhos faiscantes, estendendo-lhe a mão descarnada.

- Jesus – respondeu, recuando. – Mas, como não bebo, muita gente me chama de Exceção – ainda quis brincar, esforçando-se para manter a compostura.

Foi então que o gato gordo saltou em direção ao peixe da criança, abocanhou-o num só golpe e caiu de costas sobre a pouca grama da margem. De olhos fechados e com as patas dianteiras pousadas sobre a barriga intumescida, o despudorado felino ainda soltou um tremendo arroto, que fez gargalharem Nicolau e o jovem de pincenê.

- Chega, moleque! – berrou o pai – Você ouviu sua mãe: vamos embora agora mesmo!

Sacou uma nota de vinte da carteira, arremessou-a com negligência em direção a Nikolai e, por via das dúvidas, benzeu-se três vezes antes de sair apressado, arrastando mulher e filho pelos braços. Vai que a vida imita mesmo a arte...

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Ricardo Mituti é jornalista, escritor e coordenador do Laboratório de Leitura. Atua como assessor de comunicação desde 2000. É coautor de O Brasil do Sol Nascente, autor de Histórias (Quase) Verídicas - adaptado para websérie - e Órfãos de São Paulo. É, ainda, idealizador e apresentador do talk show lítero-cultural Epígrafes, no ar na internet entre 2016 e 2018, e da vivência lítero-humanística Viva Livros - Uma Experiência Literária. Também é palestrante, redator, roteirista, produtor, editor, ghost writer, narrador de audiolivros, mediador de debates, mestre de cerimônias e consultor para assuntos do mercado editorial e livreiro. É mestrando em Saúde Coletiva na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, com pesquisa em "Humanidades, Narrativas e Humanização em Saúde".

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