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Opinião

Um país feito de éter: Mario Viana, o racismo e as redes sociais

Por: SIDNEY NICÉAS
“Esta semana, as pessoas manifestaram mais pena da vidraça do supermercado do que da família do cara que morreu. Que pesadelo é esse?”

Foto: Guilherme Gonçalves/Fotos Públicas

23/11/2020
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*por Mário Viana

Nas revistas de palavras cruzadas, éter é sempre citado como o primeiro anestésico. Na Wikipedia, ele é definido como uma função orgânica – numa dessas explicações inacessíveis para alguém que nunca fez da Química sua matéria escolar preferida. Fiquemos com a palavra cruzada para tentar entender o clima de ficção científica que tomou conta do Brasil: fomos sufocados por uma nuvem de éter. Estamos sob anestesia crônica.

Só pode ser isso. Vivemos completamente grogues com o ar viciado que respiramos. A sensibilidade nos abandonou de vez e “empatia” – a capacidade que temos de nos colocar e sentir o outro – virou apenas uma palavra da modinha, sem verdadeira aplicação prática.

Prova disso é o grande número de comentários nas reportagens sobre o assassinato do homem negro em um Carrefour de Porto Alegre: muita gente culpava a vítima. Da mesma maneira que o machismo coloca na minissaia a justificativa para o estupro de mulheres, os racistas creditam ao negro o papel de causador da própria tragédia. Alguma ele aprontou.

Em geral, minha política de sanidade mental me aconselha a não ler os comentários. Nem sempre se consegue driblá-los. Neles, começa o desfile grotesco de ideias absurdas.

Não acho que seja culpa das redes sociais. Facebook nenhum me obriga a ser um racista reacionário desprezível. Também não me obriga a ser um incendiário anarco-terrorista. A rede social, em tese, apenas me possibilita externar minhas ideias. E com isso me aproximar dos que pensam como eu.

Isso fez com que muita gente perdesse o pudor de abrir o coração. Sabe aquelas ideias malucas que passam fugazes por nossa cabeça, talvez numa bebedeira ou sob efeito de algum elemento fumante ou cheirante? A rede social eterniza isso. Por mais rampeira que seja, sua ideia encontra eco e você se sente em grupo.

É como se a pessoa se sentisse eternamente responsável pelo que escreve e não pelo que fala. Quanto mais difíceis foram suas redações escolares, mais a pessoa acha que, uma vez escrita, a coisa se torna séria de verdade. E logo o que era apenas uma flatulência cerebral se transforma numa corrente de pensamento, outras pessoas espalham, aquilo vira um livro, você é chamado de filósofo e, não demora, está perdendo processo pro Caetano Veloso.

Por isso, tornou-se cada vez mais comum alguém vir a público dizer que suas palavras foram tiradas de contexto. Nunca antes, na história desse país, tantas palavras se viram afastadas de seu sentido puro, inocente e casto. A pessoa falou, está registrado em áudio e vídeo, mas quando ela lê a mesma frase reproduzida em posts e jornais é que percebe o calibre da besteira . Não importa que todo mundo possa ver o que foi dito, nega-se e pronto. Na cabeça deles, “contexto” deve ser a transferência do oral para a fase impressa.

Muitas vezes, leio uma declaração e invoco o espírito de um monge budista do Laos pra me acalmar e não partir pra ignorância. Este é um dos efeitos colaterais daninhos do contágio com ideias abjetas – elas despertam o ódio que há em nossas células mais secretas. Ódio é o tipo de sentimento ruim, que não vale a pena cultivar – sério, penso isso mesmo. Eu odeio quando despertam esse ódio em mim.

As pessoas tripudiam do casal de atores negros e famosos que testou positivo para covid-19. “Que adiantou defender tanto o isolamento social? Hipócritas!” – li isso. Tive amigos que colocaram na menina Agata Félix, de 8 anos, a responsabilidade por ter sido baleada dentro de uma kombi numa favela carioca, em setembro do ano passado. Afinal, o que fazia uma menina com a mãe na rua às oito da noite? Esta semana, as pessoas manifestaram mais pena da vidraça do supermercado do que da família do cara que morreu. Que pesadelo é esse? Que éter batizado!

Antes, esse tipo de raciocínio só devia aparecer numa sessão sofrida de terapia, daquelas que o paciente sai diluído nas próprias lágrimas. Pelo jeito, acabou o sofrimento. Em vez de pagar o terapeuta, o sujeito entra no facebook e solta o verbo. Coitados dos freudianos, ficaram sem o ganha-pão. O divã perdeu pro teclado.

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Mario Viana é Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

https://vianices.wordpress.com/

https://www.instagram.com/marioviana

https://www.facebook.com/mario.viana.948

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